quarta-feira, 25 de março de 2015

O Espelho

- Há tanta tristeza nesse mundo - escreveu no caderninho azul de folhas amareladas, suspirando fatigada. Sua sobrancelha arqueou-se levemente ao rasgar a folha do bloco e descartá-la rispidamente. Não presta, refletiu enquanto os homens de terno preparavam o comodo agitados. E Cecília apenas sentada-despejada na poltrona opulenta Verde Pantano com ornamentos dourados. Assistia. Não havia ali lágrimas mas um sentimento de suspeita, como se algo.

- A vózinha com seus 87 anos ainda vaidosa e saudável que sem mais nem menos, de repente, de uma hora para a outra. Lembro-me de sentar nessa mesma poltrona e assisti-la no seu grande espelho dourado cheio de rococós (ou seria mais de um período barroco?) pintar os olhos amanteigados, os lábios secos, as sobrancelhas inexistentes, as feições raras. Sorria para mim através do espelho, e me enchia de calafrios quando fazia isso. Seu olhar fosco através do vidro parecia pertencer a uma outra era.

Herdeira única, e Cecília nunca ao menos gostou dela. Talvez nas tardes chuvosas em que a deixava assistir televisão enquanto a mãezinha trabalhava. O pai ausente, que desapareceu um dia. E a mãe que também um dia resolveu levar uns vestidos para o concerto e nunca mais se ouviu notícias. Estudou e trabalhou muito, e por alguma ironia no fim, ou poderia ser esse o início, herdou tudo, a vida inteira. 

Ao lado do espelho, uma pequena cômoda cheia de vidrinhos. Os rouges, como diziam antigamente, os estranhos lápis coloridos que criavam linhas aonde essas já haviam a muito tempo se apagado, as pequenas amostras de perfume. Tudo muito diminuto e delicado, ofuscados pela grandeza daquele objeto. Observou pela primeira vez atentamente as esculturas cravadas na madeira, alguns cordeirinhos e querubins saltitantes, o sol e a lua cada qual em seu canto, os ornamentos demasiados que sufocavam todas as demais figuras.

Notou então sua imagem refletida no espelho. Seus longos cabelos ambar, sua pele demasiadamente pálida, a gola da camisa que não se alinhava bem com seus ombros estreitos, e seu olhar. Porém existia algo na profundezas de seus olhos que lhe provocavam os mesmos calafrios que sentira anos atrás. Sentiu que ela também não pertencia a essa Era, ou ao menos aquela menina refletida que agora a encarava com uma certa malícia no sorriso e nos olhos foscos e hipnotizantes.

- Me afastei do espelho cautelosamente, observando a Cecília refletida se acabando em risos. Toquei meus lábios na tentativa desesperada de saber se seria ela eu. Mas os gestos da imagem eram tão distintos dos meus. O jeito que alisava o cabelo com a ponta do pente de tartaruga, da mesma forma que minha vó costumava fazer. Eu nem ao menos sabia onde estava o pente da vovó e ela, com o olhar fixo ao meu, tocou de leve a terceira gaveta da cômoda para que eu o encontrasse. Desatei a rir também, ou ainda era ela? Sorria agora contente, os dedinhos vorazes se enfiando no canto esquerdo da gaveta. Apanhou um dos vidrinhos roxos-azulados e olhando para mim entornou-o entre seus lábios. Agora olhava para mim ansiosa, como se inquieta estivesse novamente aguardando a minha vez.


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