sábado, 15 de dezembro de 2012

No Espelho

Vi meu corpo raquítico esfregando as curvas da parceirinha e reparei como estou franzino, pêlo e músculo. Um amante moderno à moda antiga. Beijava o canto posterior de sua orelha, sussurrando palavrinhas de baixo calão.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Querida Cecília

Eu queria que você aprendesse primeiro uma coisa que sinto que lhe falta e muito no seu caráter. Amor? E você leu outro dia que não podemos ligar e desligar o amor como se fosse um botão, mostrou para mim e deu risada, disse que você podia. Não tão fundo aquele olhar doído de quem cansou da brincadeira. Você sempre se cansa tão rápido de brincar que ninguém te entende, nem mesmo eu que. Lembro claramente de todas as vezes quando chegava em casa, os pesinhos frígidos tocando o piso gelado, enquanto aos pulinhos vinha ao meu ouvido contar uma nova história. O coraçãozinho apertado tentando escapar para fora da gaiola costela. O ruído de alegria que soava dentro de todas suas entranhas. Shhhhhhhh Como uma panelinha de pressão o amor dentro de você zumbia. Você até cheirava amor naqueles dias, impregnando de um açucar enjoado a casa inteira. Quantas semanas se passavam então? Até você ficar ruinzinha. Até o cheiro começar a te dar náuseas e eu te encontrar por aí com alguém segurando seus cabelos castanhos alourados enquanto você colocava a vida para fora. E o doce amor agora descia pelo ralo.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Milgrau

Herculano é um excelente rapaz. Dono de uma CB caindo aos pedaços, hoje ganha as ruas e a vida como motoboy numa boa firma. Sua infância não foi lá muito gloriosa, o pai abriu uma adega, que faliu logo na sequência. A mãe morreu repentinamente de derrame, por sorte, um dia antes ao falecimento ela havia confiado a guarda de Herculano às mãos de um novo amigo do filho, Tom, que passava confiança e tinha arranjado um trabalho digno ao filho dela, salvando-o de vez dessa vida de maconha, bebida, cocaína, safadeza, marginalidade. Herculano além  ganhar um amigo fiel – e pai – agora encontra o amor, nos beijos e abraços da Neguinha. Casam-se e vão morar na favela. Herculano compra um Kadett 91 e a Neguinha consegue um fogão, geladeira, mesa, tv, cama, sofá e um computador semi-novo, tudo à preço exuberante. Adotaram um gato que rondava de vadiagem pelas redondezas e o batizaram de Milgrau. A vida não é fácil, mas eles levam na coragem, ele trabalhando todos os dias como Motoboy e ela nas costuras e venda de bijouterias e badulaques. O amor, às vezes não é suficiente, mas no final se entendem. O casal tem na parede uma folha impressa em papel jornal escrita:

"O Senhor é meu provedor de banda larga e Ele nunca cairá."

Neste fim de ano estão muito felizes e ansiosos, planejando passar o natal na casa do Tom e o reveillón no litoral.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Vodka

No estacionamento encontramos uma garafa cheia de vodka importada. Daquela bem bonita e reluzente de fazer o olhar lacrimejar. Carlinhos, o líder da turma deu o primeiro gole, fez cara feia. Ofereceu a garrafa para o Matheus, fazendo pose de machão, deu um pequeno gole e tossiu. Gílson sorveu uma golada e na sequência um urro, imitando o pai que é bebum. Minha vez, bebi daquela seiva russa e gostei da sensação. Jogamos um pouco mais de futebol de botão enquanto aquela bonita garrafa nos assistia, como que percebendo a tensão de cada um em se mostrar mais viril que o outro. Quem teria a coragem de dar o próximo gole?

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Só mais essa noite

O batom deslizando úmido pelos lábios rachados. Só mais essa noite. Ela suspirou olhando a sua imagem destorcida no espelho com bordas douradas rococó, o verniz feito ouro descascando das arestas pontudas. A liga se esquivando dos dedinhos trêmulos e ébrios, na triste tentativa de impedir a moça de arrumar cliente hoje.

Abotoa o vestidinho preto cheio dos remendos, porque todos eles estouram. Gostam de chegar arregaçando tudo, o vestido e a menininha lá embaixo, e vão se enfiando como polvos cheios de tentáculos abrindo os buracos. A conta é essa, mais cinco reais dos botões estourados. Ou a conta é essa com os cinco reais dos botões inclusos, porque isso é negócio serio não quero ter prejuizo.

Só mais essa noite. Ela respira fundo enquanto calça os sapatinhos pretos de salto fino. Os tornozelos rubros de frio se esfregando. Junto a grana e vou pra Alemanha começar tudo denovo. Já ta tudo dentro da caixinha, o dinheiro e a foto da Nossa Senhora das Graças. Meu Pai me perdoa e me leva pra Alemanha que é o paraíso e eu começo tudo denovo como uma moça honesta. Arrumo até um alemão desses bem louros e altos de olho azul, caso e tenho dois filhos. Raquel e Renato. Quero um casal.

Sai da pensão pelo portãozinho dos fundos que é pra ninguém ficar sabendo. O danado range mas mesmo assim ela agiliza o passo com as pontinhas do sapato igual bailarina tic tic tic, o vestido esvoaçando mostrando toda a vergonha. O vento a empurrando leve, parece que não pesa uma grama.
Queria ser bailarina! A mãezinha sempre disse que eu tinha um talento natural pra isso, mas depois sumiu. Sumiu e me deixou com um cara lá, o padastro. O padastro com os dedos de aranha estourando meu pijama. Faz 8 anos já, que cada ano que passa eu ponho uma bolinha no colar da mãezinha e prendo ele na calcinha pra me dar boa sorte, só mais essa noite vou precisar.

Um carro preto perto da calçada. Oi boneca. E a moça se desliza para dentro e fecha a porta.
A conta é essa mais 10 reais para consertar o forro do vestido que o senhor rasgou. E o negócio é serio, não quero prejuizo, amanha vou pra Alemanha.


domingo, 11 de novembro de 2012

Oniricamente em Mistério

Bem-me-quer, mal-me-quer. Abri-lhe uma garrafa de vinho, cheiramos a cortiça, gosto seco e perfumado das melhores uvas da península ibérica. Ela, no alto de seus 30 anos. Ela, mulher feita. Emanando notas cítricas e almiscaradas. Vestida com vestido de cetim. Uma enxarpe bordada e a barra com alguns detalhes em brocados, enfim. Que as leves carícias sutis desnudavam largadas pelo carpete, broches, inclinados até o rodapé. Ligeira poeira. Corpos lascivos que se chocam, roçam, sinuosos contornam, do chão ao colchão. À contorcer a alma exausta de prazer. A melodia, o vinho, o mel, fluídos entre a noite e o dia. Claras são essas coisas do amor. Claras como a pálida tez do luar, veladas em espessa bruma no ar.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Mazela

Bem-me-quer, mal-me-quer. Sempre substituindo uma imensa auto-maldade por outra qualquer, especialmente dirigida às pessoas que bem lhe quer. Quando as portas estão fechadas, quando a honra foi manchada. Nem uma tacada de sorte lhe salvará. Um trago no meio da noite, uma puta dançando no asfalto. Nem uma boceta de salto lhe salvará. Apesar de toda mudança tecnológica as coisas andam ao deus-dará. Os hipster andam pra lá, os revoltosos cá, todos na paranóia, que abraçam a primeira causa nobre. E moralistas tentam regar suas plantas, tudo em vão. Por baixo de toda essa patranha, as placas tectônicas e o magma vulcânico vindo das entranhas. Que jorra, esquicha, sangra e chora, expalha por toda tensão. Bombando. Em cada artéria do ser-humano. Que relaxa.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Aquele casal extraordinário que costumávamos ser

Encontrou a gatinha atropelada na rua, toda estropiada mas ainda respirando. Levou para casa, salvou, cuidou, a batizou de Liga Leve. Essa gatinha mudou toda a sua vida. Passou a ver a vida inteira sob outro prisma. Passou a ver as coisas como ela são, não mais pela ótica da ilusão. A dura realidade ou a doce ilusão. Sabia que um dia veria as coisas com transparência, e a gatinha, Liga Leve, fez perceber isso com toda volúpia que uma realidade se apresenta, mas de uma forma tão singela, conquistara seu coração, sua alma abraçada, quase pode tocar as nuvens fofas de algodão e se deitar feliz num sono bom. Viver é um sonho bom.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

A Cirurgia

Sinto-me feliz quando ela diz que ama outro homem. É um alívio não ser amado.
Mas enfim, puz o avental. Como quem calça luvas de boxe, e parti para a luta.
No caminho da sala de cirurgia pensava no quão fracassado eu era. Não soube descrever a operação. Sem inspiração. Seria o excesso de álcool no sangue por dias infindáveis? Ou o excesso de pensamentos aleatórios e devaneios pecaminosos?

Meu corpo todo se contorcia enquanto eu sucumbia aos delírios febris. Fazia uma semana. Meus poros encharcados de suor, os lençois de baunilha agora salgados fediam. Por favor, eu suplicava para a dor, mas ela insistia. E uma essência  putrida evaporava pelos meus orifícios. Pude escutar o rangido de meus ossos na tentativa falha de me levantar da cama. Antes que a luz se apagasse eu pude enxergar um corte na cuticula do meu dedão, e algo que parecia um algodão esverdeado se desfazendo enquanto eu rastejava pelo assoalho. Me encontraram na varanda de casa enquanto um cachorro tentava usar meu corpo desmaiado de tualete.  Alguém chamou uma ambulância.

9:15 da manhã. Espero sentado no sofá da minha casa, com toda complacência. Cada minuto ribombando a mente. Não quero me levantar, não quero sair para a rua, trânsito. Às 10:34 estou calçando as luvas de silicone, minha equipe asseadamente está a postos, com todos os instrumentos na bancada azul esverdeada. Este sujeito maltrapilho jogado em cima da maca não é estranho. De certo modo me reconheço neste semi-cadáver. Não preciso saber o seu nome, apenas o trabalho. Sei que no final a família irá me agradecer, como se eu fosse algum santo, ou algo que o valha. Quanta ironia.

Eu não tenho família. Foi tudo o que eu consegui balbuciar enquanto a enfermeira segurava meus braços para o termometro não cair deslizando pela minha pele molhada. Um acidente de carro quando eu era criança, meus avós que cuidaram de mim, o vô batendo nas minhas costas com a vara de jaboticabeira por causa da bebida, por causa da bebida e da tristeza. E depois chorava enquanto o sangue escorria sem que eu entendesse. Agora entendo, e te perdoo vô, para que o senhor não venha me encontrar com a vara de jaboticabeira denovo ao lado do Paizinho. Porque deve estar perto. Me disseram que esse ano o mundo acabava, mas eu me acabo muito antes, foi o que o médico me disse. Tem uma coisa podre dentro de você, apertando minha barriga estufada. A marca vermelha dos dedos custando a desaparecer, vamos ter de abrir.

Enfermeira, agiliza o bisturi. A carne da pele que mais se assemelhava um véu gelatinoso, nunca fiz uma incisão tão fácil nestes 13 anos de carreira. Macia e pútrida. Snict! O cheiro que podíamos sentir apesar da máscara, perfumava a sala com um odor que rivalizava ao de éter. Sangue jorrando estranhamente. Cortei a terceira veia, injeções mantinham o paciente desacordado, mas não era necessário. Snict! Chegara tão imaterial, que a única coisa verdadeira era este corpo estragado largado na nossa frente. Pessoas são cruéis consigo mesmas. Não me interessam destinos, apenas o passado. E desta carne abjeta, exposta à luz fria, descortinava um mundo de sórdidas reminiscências. Hemorragia intensa. ÁLCOOL, enfermeira. Rápido!

Será esse o paraíso? E a paz induzida da morfina entorpecia todas as extremidades do meu ser. Sentia-me tão leve que a carne macilenta de minhas coxas parecia flutuar pelos lençois encharcados de um líquido verde viscoso. Por que eu nunca experimentei drogas antes? Não era certo se eu podia abrir meus olhos ou se era tudo apenas um bonito sonho. A sala branca imaculada com as cortinas creme que bailavam ao vento roçando gentilmente a ponta de meu nariz. O líquido verde era agora um belo gramado cheirando orvalho fresco que eu podia tocar sutilmente com os dedos. E tudo cheirava mar  e eu conseguia ouvir o barulho das ondas quebrando no fundo dos meus pensamentos, sorri. Uma felicidade me preencheu a barriga. Barriga feliz como quando a gente come uma coisa muito gostosa e sente nosso estomago dizendo obrigado. Mas e a máscara de oxigênio? O Vô ali de pé me esperando com a vara de jaboticabeira. Enfermeira, ALCOOL. Alguém gritava com desepero. E minha barriga explodia de felicidade.

Eu tenho asco. Eu tenho nojo. Asco, aversão. Cada veia cortada é uma ampulheta virada na minha vida. Quantas ampulhetas ainda terei de virar? Tivemos de virar uma ampulheta a fim de conter a hemorragia. Cortamos o abcesso originário do carcinoma. Realoquei uma placa de titânio com sucesso na artéria da ponte de safena. Maldito corpo canalha, vai sobreviver. As paredes internas do músculo abdominal adutor demonstravam uma inflamação estranha em nível avançado. Lancei mão do bisturí e separei com cuidado dois nervos ciáticos cortando o terceiro, mesmo sem anestesia local. Preferimos não aplicar anestesia geral devido ao estágio avançado de debilitação do paciente. Perfurei o estômago, encontrei uma úlcera, raspei o couro biliar e com o excesso sangue eu quase não podia enxergar. Necessário um choque de estímulo cardíaco. O paciente exultante abria os olhos vidrado no teto. Pobre coitado, tinha cara de homosexual, seu ânus havia um alargamento característico e seu pênis continha uma protuberância dígna de vida promíscua. Estômago em ordem. Batimentos cardíacos dimunuindo. Pedi para o meu assistente costurar a região do baço, onde retiramos um feijão do apêndice, um milagre este corpo ter chegado vivo até mim. Saí da mesa, Carlos ofereceu-me um bombom, comi olhando para baixo, amassei o papel de plástico, joguei no chão e fui de encontro àquele corpo aberto, enfermeiros não conseguiam conter uma outra hemorragia, estavam desesperados, o aparelho demonstrava ritmo cardiorespiratório baixo, apalpei a região inchada. Dobrei a carne, dei os últimos pontos, mas algo estranho aconteceu.

A vaca leiteira do vô me olhava ruminante com cara de paisagem enquanto os leitõezinhos esfomeados se empoleiravam para alcançar suas tetas. Os dentinhos finos estraçalhando a mucosa tenra. Mimosa nem sentia com sua expressão francesa enquanto o sangue misturava ao leite e os bichinhos igual hienas iam comendo e sugando a carne inteira.

Enquanto raspávamos a região da virilha – a fim de retirar um carcinoma do tamanho de uma cabeça de leitão – a artéria femural começou a expelir, além de muito sangue, um jorro purulento misturado a... esperma. Não entendemos. Conhecíamos bem aquele tipo de caso raro na faculdade. Tratava-se se um T.D.E.F. - Transtorno de Déficit de Estrutura Familiar. Rapidamente Carlinhos, o enfermeiro-senior, cauterizou o abcesso. Mas outra parte de seu frágil e ignóbil daquele corpo moribundo começou a inchar - o baço. Fechamos com 6 pontos frouxos o abdomen do paciente e logo pressionei o edema. Forte convulsão. Violentíssima. Ouvimos um mugido estridente. O paciente começou a berrar – MÃEZINHAAAAAA! – em seguida um guincho impronunciável, e, num último solavanco, ceder e entregar o corpo aos aparelhos que ali iniciavam eletronicamente a respiração artificial. Apertamos os nós dos pontos abdominais. Enchemos a região da virilha que continha a cancerígena com gordura hidrogenada calcificada, filtramos e fechamos algumas veias e dei visto na papelada final. Cansei.

Lá fora, no saguão principal, pisquei para algumas estagiárias lindinhas (eles me adoram) lavei as mãos na enfermaria e fui dar o visto no prontuário final, quando me deparo com o sobrenome, ao lado da insígnia entre aspas "INDIGENTE" encontro o meu sobrenome, desmaio. Algumas horas depois, sedado, através de rostos crispados, ouço a confirmação que o invertido e falecido era meu filho, aquele mesmo que abandonei ainda bebê, fruto de um casamento mal sucedido, em que, a mãe, aquela vaca, morrera "acidentalmente" no curral.





segunda-feira, 10 de setembro de 2012

A foto

Por todas as coisas que passei e por mais peculiares que se agravassem, há uma situação que permanece como um estigma em minhas memórias.

Era junho e eu estava bem contente com meu vestido novo de inverno. Tinha umas manguinhas compridas e seu tecido grosso cinza abraçava toda minha pele. Um ziper imenso no meio das costas. Gostava de ouvir o danado fechando e abrindo, zup zup. E colocava a maquiagem densa na frente do espelho, pra pele não rachar. Por último o rímel espesso se alastrando como doença nos meus cílios curtos, tão curtinhos que não tinham nem graça. Parecia um menino, um menininho moça toda delicado. Mas menino. Passava o pincel vagarosamente fazendo tremer as pontinhas pra pegar bem. E os lábios púrpura cintilante entreabertos. Os dentes pálidos borrados de batom na bordinha.

Escutei a buzina, alastrei o perfume pelo meu pescoço, uma ultima olhadela pelo espelho. Um sorriso. Hoje você parece bem Cecilia Ana. O barulho do salto alto toque toque toque descendo as escadas. Já estou indo!

Entramos em um lugarzinho bem ordinário, ao menos o álcool era barato, ou isso era o que eu repetia para mim mesma na tentativa de me sentir menos snobe. Pra que o salto e a maquiagempraque. Ele ria ébrio, gargalhadas de felicidade enquanto tentava arrumar com as pontinhas dos dedos o roxo em meus dentinhos. Não sabe nem passar batom, Cê. Não sei mesmo. Ou será que fiz de propósito para que ficassemos assim tão próximos? Sorri.

Alguém tirou uma foto minha. Um deles tinha uma câmera daquelas que soltam o papelzinho instantâneo. Só chacoalhar e pronto. Olha como você ficou bonita, Cê, mas não se parecia nada comigo. Ou eu que, deixada levar pelo álcool barato nem sabia mais o que estava fazendo ali. Vai ver sou bonita assim mesmo, e todos riram transpirando cerveja. Eu estava sem minhas lentes de contato, vai ver fico melhor sem elas assim, livre.

O despertador insistiu em me levantar da cama, o maldito. A cabeça 10 kilos mais pesada, meu pai me ajuda tirar essa cabeçona do travesseiro, mas ele nunca ouve quando eu peço. Com algum esforço me coloquei em pé. Os pezinhos sofridos de salto e as pernas cheias de hematomas, eu não sei porque eu me acabo tanto. O espelho. Quem é essa aí?

Talvez fosse só o excesso de maquiagem que ainda resistia em se retirar do meu semblante, faz o favor. E o rosto encharcado de água agora buscando algum conforto na toalha fofinha algodão. Eu não me pareço mais comigo. Meu coração acelerou. Meu nariz sempre foi assim? não era menos estreito? E essa pinta ali no canto? Não era do outro lado? E essas sobrancelhas arqueadas, de onde foi que elas vieram?

O celular dele tocou. Renato, Renato, você lembra daquela foto?

Meio dia e trinta e cinco, e por que insistimos em colocar tantos "es" entre as horas. A foto estava toda púrpura batom também. É a luz, Cê. Ele tentou explicar. Você ficou muito bem na foto. Mas Meu Deus Renato não se parece nada comigo. Só o vestido de inverno com o ziper grandão que eu lembro. Cade a marquinha, Renato? Cade a marquinha no canto do lábio, a cicatriz?

Poxa vida, Cê, eu só dormi 5 horas e você me vem com essas suas histórias malucas? Nunca vi cicatriz nenhuma, cara, e você fica aí se entupindo de corretivo e base na cara, e tava escuro, cara, como você quer, olha lá no espelho, vou pegar, você vai ver, olha só no espelho cara.

E não era mais eu. Ou eu sempre fui assim e nunca reparei? Não havia cicatriz. Meus lábios eram mais fartos do que eu me recordava. E esses cílios longos surgiram de onde? Renato desmaiado no sofá. Acorda, meu. Pega lá o álbum da vó que eu quero ver as outras fotos da gente, de antes. Pega lá agora, meu.

E Renato desmaiado no sofá.

Eu não lembrava que haviam tantas caixa e poeira dentro daqueles armários. Alcancei meu álbum de formatura, e eu não queria nem fazer as contas de quantos anos atrás aquilo tinha, não gosto de me sentir velha, sabe? E lá estava eu com o aparelho nos dentes escondendo o sorriso. As bochechas infladas de juventude. A cicatriz no canto lábio da vez que tentaram me ensinar a andar de bicicleta.

Corri para o espelho, e num susto aliviado a danada estava ali outra vez. Mas quem era essa moça na foto que não era eu.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

O Fim do Mundo

Logo depois descemos a ribanceira para encontrar o resto do bando e contar a novidade. Colaram mais alguns chegados e na sequência o Alemão, deslizando feito lagarto sebento - velho conhecido da rua, não gostava de pegar no batente, então passava fumo e farinha - que, apesar de não ter muita amizade com a maioria ainda assim fez uma reverência e foi se enturmando.

Eu via metade dos camaradas do outro lado da rua epoleirados feito corujas sossegadas. O sol batia de voleio no meio da rua. Tumba deu a letra à todos letra que era melhor nos recolher no bar. Aquele mesmo com teto de zinco e paredes de madeira, bom ambiente da rapaziada. Vi minha namorada com a turminha dela, deixa ela ali, não me preocupo, não gosto mais dela mesmo. Perguntei rindo ao camarada Tumba: Qual que é? Ele disse pra gente se proteger. Todos no interior do bar ficamos de cócoras. E pela janelinha de vidro da porta principal pudemos ver o espetáculo que se apresentava. De repente uma sombra gigante na paisagem e uma nave escarlate da dimensão de um bairro aterrizando capenga e indo de encontro às montanhas. Estrondo.

Fechei os olhos e ouvia os estrondos seguidos se aproximando e ficando maiores. Olhos fechados e ouvindo pedras, madeiras e escombros caindo. Segurei protegendo os óculos com as mãos e abracei bem forte meus amigos, alguns eu não sentia mais. Os estrondos cessaram. Temi abrir os olhos, segurei protegendo os óculos com as mãos para não se quebrar. Ouvi mais estrondos, pedras, estilhaços, senti os escombros e o imenso tremor de terra. Abri os olhos e sonhei que atirava bolas de meia na plateia.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Dama de Espadas

Oh, quanto tempo, majestade!
Quanto tempo...
Cabelos desgrenhados e a pálida tez
Continuas a mesma friagem calculista
A racionalidade imperando seus atos
Reprimindo-lhe as sensações.

Que pena! Dama de Espadas.

Não reflito em seus olhos castanhos e aflitos
A sua aura inteligente e cortante de outrora
Afundou-te a alma bem funda em si mesma
Esqueceste do mundo lá fora.

Que pena! Dama de Espadas.

Acreditei na afinidade do espelho narciso
Enxergava nas cartas, runas, pedras e vinho
O nosso coração, dançando, inebriante
A mesma melodia, o mesmo ritmo.

Que pena...


domingo, 12 de agosto de 2012

Trago de-volta a pessoa Amada.

É esse o lugar? - Murmurei um tanto silenciosa porque e se fosse o lugar e alguém ficasse ofendido? Eu não gosto dessas coisas de ofender os outros, já basta a vida. Ela segurava minha mão enquanto atravessavamos as portinhas coloridas mergulhando nos corredores úmidos cheirando mofo. Verde embolorado. Relaxa Cê, eu sei aonde eu tô te levando. Você precisa ver essa Dona, coisa incrível, lembra do Mauro? Lembra né. Puts, então. Relaxa que eu sei o que eu to fazendo.Você precisa ver, Cê, Puts. Ela fala umas coisas assim que você não acredita,sabe? Como ela sabe? Não sei mas. Puts, não dá nem pra explicar. Ama-ração-Amor-rosa. E o amor rosinha escapando do meu peito. Cansei, quero ir embora, não chega nunca, tá doendo, tá tudo doendo, não aguento mais respirar verde esse mofo, meu pulmão, tá todo fodido já, deixa quieto. Uma voz soprou no meu ouvido um ruído pavoroso e do fundo daquele quartinho, me chamou pelo nome. Cecília Ana. A porta era vermelha e tinha umas coisas esquisitas escritas no chão com cal branco. Uma cortina de miçanguinhas púrpuras. As janelas pregadas por dentro com espessos pedaços de madeira. Os vidros embaçados de umidade. Um velho ventilador enferrujado trazia a vida comodo adentro. A senhorinha sorriu para mim, seus olhinhos membranosos e miudos, azuis de catarata. Ela começou a gargalhar. Porque você se dói tanto Cecília Ana. A mãezinha sabe o que você quer. Ah... Mas você tem certeza que quer mesmo? Meus olhos se encheram de mofo. Quero dizer, água. Se você sabe tanto, você não precisa me perguntar isso. Murmurei silenciosamente na esperança que ela não ouvisse. Os ouvidinhos cegos também. Ela continuou sua medonha gargalhada. Havia um quadro negro na parede. Ela abriu um cesto fedido coberto de penas. Uma galinha preta. Torceu os dedinhos ao redor do pescoço estreito do bicho. A cabecinha saiu feito tampa de desodorante. Seu nome escrito em sangue no quadro vermelho. Nadia havia desmaiado já na parte da cabecinha. Ela jogou pinga na parede e botou fogo. As janelas fechadas. As chamas que permaneciam no sangue oleoso. Começou a balbuciar alguma coisa que não seguia ordem ou ritmo algum, mas eu entendia. Entendia profundamente enquanto o diabo se divertia com o rabo enrodilhado entre as pernas.E a fumaça rubra me penetrando as narinas. O sangue escorrendo até encontrar meus lábios. Eu não perguntei e nem fiz questão de entender o que havia acontecido. Pedi a conta. Deus me paga. Ela sorriu com os dentinhos amarelados caindo. Acorda Nadia, a gente precisa ir. Alguém morreu. Eu não sei o que foi que ela pensou que eu queria.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Fila

"Eis me aqui, senhora detentora das emoções, bem aqui, à sua porta. Você, que vivia me chamando de aluado, farrista, sem-vergonha... Eis-me aqui, suando feito boi ladrão, é vim correndo, pra te dizer que tenho febre, especialmente na sua companhia. Sua pele, antes cheirosa, agora me dá certo asco, todo convite seu é um martírio para mim. Logo você que franzia o cenho toda vez que eu lhe contrariava, justo nas horas em que eu mais me sentia eu-mesmo: e sentir-se dono de eu-mesmo é a elevação suprema que qualquer ser-humano almeja! Puta estado de sublimação etérea! E você não passa de um micróbio! Olha o caminho lindo à frente temos para queimar! Tá bom, tá bom, sou uma criança, imaturo..."

Na fila que não andava a conversa se arrastava acirrada, era uma discussão? ou era um relato? Não sei.

Sei mesmo é que uma senhorinha, de uns 50 e poucos anos de idade, lá do fundo resmunga: É, a coisa não anda por causa desses idosos...