quarta-feira, 5 de junho de 2013

Negativo

Eu nunca conheci minha tia. E, se não fosse pelas gafes cometidas pela minha mãe durante alguns almoços de domingo, talvez minha ela nem tivesse existido.

A primeira vez meu pai, em uma tentativa tola, quis tampar meus ouvidos. Em vergonha, os dedos ossudos de minha mãe puseram-se a cobrir seus lábios. O olhar rígido de meu pai em reprovação.
"Eu lembro um dia quando Cecí.".E eu sentia que aquela tal de Cecília seria um exemplo para tudo, se a permitissem.

Não existiam retratos dela. Todas as fotos de família pareciam ter acontecido em um estágio avançado da vida, como se pouco antes de eu nascer não existisse a fotografia, ou senão haveriam grandes buracos na linha do tempo. A infância de meus avós, o casamento, meu pai bebê e até cerca de seus seis anos de idade. Hiatus. O casamento de meus pais e algumas fotos recortadas em tamanhos e enquadramento peculiares. Meu nascimento. Meu berço com um par de mãos não identificadas posando ao lado, o anel dourado e fino, as unhas vermelhas e curtas, um recorte em diagonal.

Seria sua ausência, ou aquela sensação de que algo havia desaparecido, um alivio a perda, ou o tornaram assim para que nunca ninguém se esquecesse de minha tia. A peça do quebra cabeça que  perderam e então se torna a mais importante atraindo todos os olhares para o vazio, a fresta que abre abertura para o fundo do quadro.

A mera pronuncia de sílabas que se assemelhassem a seu nome já produzia grande efeito em minha Vó, se escolhendo pelos cantos doída. Era proibido perguntar sobre ela.

Eu nunca entendi o porque de todo aquele misterio e passava horas aos finais de semana deitado na grama observando as nuvens, imaginando todas as possíveis hipóteses sobre o que podia ter acometido Cecília.

1. Se apaixonou por um garoto que a família não aprovava e resolveu fugir de casa. Minha avó nunca a perdoou e nunca permitiu que ela voltasse apesar de todas as cartas lamentando o acontecimento e implorando por um abraço, enquanto grávida e abandonada ligava chorando de um orelhão em um posto da rodovia.

2. Se apaixonou por uma garota e fugiu de casa. Foi morar na Escandinavia com sua namorada Suéca. Nunca mais quis saber da família e dos amigos, apesar de todas as cartas lamentosas e chorosas de minha avó querendo conhecer os netos adotivos.

3. Foi sequestrada.

Eu nunca saberia como minha tia se parecia se não fosse por aquela tarde de domingo depois do almoço de familia. Quando perguntei a minha mãe se Cecília se parecia com meu pai e ela se colocou a rir. Não, ela disse sorrindo, ela era tão diferente... se parecia muito com sua avó mas tinha os cabelos acobreados sempre despenteados cobrindo o rosto, sua vó ficava louca. Eu sorri. Corri para a gaveta de fotos, queria ver como minha avó se parecia quando ela era jovem assim como minha tia. A ultima página do livro cedeu, uma bolsa de negativos. A primeira tira cheia de fotos de uma moça dormindo. Minha avó? As mãos cruzadas sobre o peito, um bouquet de flores. A tiara que segurava os cabelos para que não caíssem sobre o rosto, um sorriso.

...25. Uma doença prematura.