Era junho e eu estava bem contente com
meu vestido novo de inverno. Tinha umas manguinhas compridas e seu
tecido grosso cinza abraçava toda minha pele. Um ziper imenso no
meio das costas. Gostava de ouvir o danado fechando e abrindo, zup
zup. E colocava a maquiagem densa na frente do espelho, pra pele não
rachar. Por último o rímel espesso se alastrando como doença nos
meus cílios curtos, tão curtinhos que não tinham nem graça.
Parecia um menino, um menininho moça toda delicado. Mas menino.
Passava o pincel vagarosamente fazendo tremer as pontinhas pra pegar
bem. E os lábios púrpura cintilante entreabertos. Os dentes pálidos
borrados de batom na bordinha.
Escutei a buzina, alastrei o perfume
pelo meu pescoço, uma ultima olhadela pelo espelho. Um sorriso. Hoje
você parece bem Cecilia Ana. O barulho do salto alto toque toque
toque descendo as escadas. Já estou indo!
Entramos em um lugarzinho bem
ordinário, ao menos o álcool era barato, ou isso era o que eu
repetia para mim mesma na tentativa de me sentir menos snobe. Pra que
o salto e a maquiagempraque. Ele ria ébrio, gargalhadas de
felicidade enquanto tentava arrumar com as pontinhas dos dedos o roxo
em meus dentinhos. Não sabe nem passar batom, Cê. Não sei mesmo.
Ou será que fiz de propósito para que ficassemos assim tão
próximos? Sorri.
Alguém tirou uma foto minha. Um deles
tinha uma câmera daquelas que soltam o papelzinho instantâneo. Só
chacoalhar e pronto. Olha como você ficou bonita, Cê, mas não se
parecia nada comigo. Ou eu que, deixada levar pelo álcool barato nem
sabia mais o que estava fazendo ali. Vai ver sou bonita assim mesmo,
e todos riram transpirando cerveja. Eu estava sem minhas lentes de
contato, vai ver fico melhor sem elas assim, livre.
O despertador insistiu em me levantar
da cama, o maldito. A cabeça 10 kilos mais pesada, meu pai me ajuda
tirar essa cabeçona do travesseiro, mas ele nunca ouve quando eu
peço. Com algum esforço me coloquei em pé. Os pezinhos sofridos de
salto e as pernas cheias de hematomas, eu não sei porque eu me acabo
tanto. O espelho. Quem é essa aí?
Talvez fosse só o excesso de maquiagem
que ainda resistia em se retirar do meu semblante, faz o favor. E o
rosto encharcado de água agora buscando algum conforto na toalha
fofinha algodão. Eu não me pareço mais comigo. Meu coração
acelerou. Meu nariz sempre foi assim? não era menos estreito? E essa
pinta ali no canto? Não era do outro lado? E essas sobrancelhas
arqueadas, de onde foi que elas vieram?
O celular dele tocou. Renato, Renato,
você lembra daquela foto?
Meio dia e trinta e cinco, e por que
insistimos em colocar tantos "es" entre as horas. A foto
estava toda púrpura batom também. É a luz, Cê. Ele tentou
explicar. Você ficou muito bem na foto. Mas Meu Deus Renato não se
parece nada comigo. Só o vestido de inverno com o ziper grandão que
eu lembro. Cade a marquinha, Renato? Cade a marquinha no canto do
lábio, a cicatriz?
Poxa vida, Cê, eu só dormi 5 horas e
você me vem com essas suas histórias malucas? Nunca vi cicatriz
nenhuma, cara, e você fica aí se entupindo de corretivo e base na
cara, e tava escuro, cara, como você quer, olha lá no espelho, vou
pegar, você vai ver, olha só no espelho cara.
E não era mais eu. Ou eu sempre fui
assim e nunca reparei? Não havia cicatriz. Meus lábios eram mais
fartos do que eu me recordava. E esses cílios longos surgiram de
onde? Renato desmaiado no sofá. Acorda, meu. Pega lá o álbum da vó
que eu quero ver as outras fotos da gente, de antes. Pega lá agora,
meu.
E Renato desmaiado no sofá.
Eu não lembrava que haviam tantas
caixa e poeira dentro daqueles armários. Alcancei meu álbum de
formatura, e eu não queria nem fazer as contas de quantos anos atrás
aquilo tinha, não gosto de me sentir velha, sabe? E lá estava eu
com o aparelho nos dentes escondendo o sorriso. As bochechas infladas
de juventude. A cicatriz no canto lábio da vez que tentaram me
ensinar a andar de bicicleta.
Corri para o espelho, e num susto
aliviado a danada estava ali outra vez. Mas quem era essa moça na
foto que não era eu.