segunda-feira, 10 de setembro de 2012

A foto

Por todas as coisas que passei e por mais peculiares que se agravassem, há uma situação que permanece como um estigma em minhas memórias.

Era junho e eu estava bem contente com meu vestido novo de inverno. Tinha umas manguinhas compridas e seu tecido grosso cinza abraçava toda minha pele. Um ziper imenso no meio das costas. Gostava de ouvir o danado fechando e abrindo, zup zup. E colocava a maquiagem densa na frente do espelho, pra pele não rachar. Por último o rímel espesso se alastrando como doença nos meus cílios curtos, tão curtinhos que não tinham nem graça. Parecia um menino, um menininho moça toda delicado. Mas menino. Passava o pincel vagarosamente fazendo tremer as pontinhas pra pegar bem. E os lábios púrpura cintilante entreabertos. Os dentes pálidos borrados de batom na bordinha.

Escutei a buzina, alastrei o perfume pelo meu pescoço, uma ultima olhadela pelo espelho. Um sorriso. Hoje você parece bem Cecilia Ana. O barulho do salto alto toque toque toque descendo as escadas. Já estou indo!

Entramos em um lugarzinho bem ordinário, ao menos o álcool era barato, ou isso era o que eu repetia para mim mesma na tentativa de me sentir menos snobe. Pra que o salto e a maquiagempraque. Ele ria ébrio, gargalhadas de felicidade enquanto tentava arrumar com as pontinhas dos dedos o roxo em meus dentinhos. Não sabe nem passar batom, Cê. Não sei mesmo. Ou será que fiz de propósito para que ficassemos assim tão próximos? Sorri.

Alguém tirou uma foto minha. Um deles tinha uma câmera daquelas que soltam o papelzinho instantâneo. Só chacoalhar e pronto. Olha como você ficou bonita, Cê, mas não se parecia nada comigo. Ou eu que, deixada levar pelo álcool barato nem sabia mais o que estava fazendo ali. Vai ver sou bonita assim mesmo, e todos riram transpirando cerveja. Eu estava sem minhas lentes de contato, vai ver fico melhor sem elas assim, livre.

O despertador insistiu em me levantar da cama, o maldito. A cabeça 10 kilos mais pesada, meu pai me ajuda tirar essa cabeçona do travesseiro, mas ele nunca ouve quando eu peço. Com algum esforço me coloquei em pé. Os pezinhos sofridos de salto e as pernas cheias de hematomas, eu não sei porque eu me acabo tanto. O espelho. Quem é essa aí?

Talvez fosse só o excesso de maquiagem que ainda resistia em se retirar do meu semblante, faz o favor. E o rosto encharcado de água agora buscando algum conforto na toalha fofinha algodão. Eu não me pareço mais comigo. Meu coração acelerou. Meu nariz sempre foi assim? não era menos estreito? E essa pinta ali no canto? Não era do outro lado? E essas sobrancelhas arqueadas, de onde foi que elas vieram?

O celular dele tocou. Renato, Renato, você lembra daquela foto?

Meio dia e trinta e cinco, e por que insistimos em colocar tantos "es" entre as horas. A foto estava toda púrpura batom também. É a luz, Cê. Ele tentou explicar. Você ficou muito bem na foto. Mas Meu Deus Renato não se parece nada comigo. Só o vestido de inverno com o ziper grandão que eu lembro. Cade a marquinha, Renato? Cade a marquinha no canto do lábio, a cicatriz?

Poxa vida, Cê, eu só dormi 5 horas e você me vem com essas suas histórias malucas? Nunca vi cicatriz nenhuma, cara, e você fica aí se entupindo de corretivo e base na cara, e tava escuro, cara, como você quer, olha lá no espelho, vou pegar, você vai ver, olha só no espelho cara.

E não era mais eu. Ou eu sempre fui assim e nunca reparei? Não havia cicatriz. Meus lábios eram mais fartos do que eu me recordava. E esses cílios longos surgiram de onde? Renato desmaiado no sofá. Acorda, meu. Pega lá o álbum da vó que eu quero ver as outras fotos da gente, de antes. Pega lá agora, meu.

E Renato desmaiado no sofá.

Eu não lembrava que haviam tantas caixa e poeira dentro daqueles armários. Alcancei meu álbum de formatura, e eu não queria nem fazer as contas de quantos anos atrás aquilo tinha, não gosto de me sentir velha, sabe? E lá estava eu com o aparelho nos dentes escondendo o sorriso. As bochechas infladas de juventude. A cicatriz no canto lábio da vez que tentaram me ensinar a andar de bicicleta.

Corri para o espelho, e num susto aliviado a danada estava ali outra vez. Mas quem era essa moça na foto que não era eu.