quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Incerteza

Pele porosa da tez de anjo do mau. Suave toque do calcanhar. E o eriçar dos pelinhos da nuca. Das ancas largas e nádegas quase retas, que na posição de quatro ficam ainda maiores. Seu cabelo preto e escorrido. Suas mechas irregulares; caracóis descoloridos. Femme fatale. Corpo estreito, colo alto, maçãzinha, seio médio e mamilos imponentes. Teimosa, acomodada e orgulhosa também. Além de inteligente, carinhosa e sexy. Cristina, Glaucia e Gabriela.

Desabafo 2

É só chegar dezembro que começa essa palhaçada de ano novo. Listas e mais listas de retrospectivas dos feitios mais elaborados ou desventurosos do ano. Tanta memória e tanta nostalgia imaginada sobre situações não vivenciadas, uma grande lorota!
E o ano mal se acaba cambaleando e os putos já vão preparando mais listas. Listas enumeradas em ordem crescente de suas futuras expectativas, sentam e abrem a cervejinha importada esperando. Resoluções! Esse ano vai dar certo - brindam, e posso escutar o tilintar das tacinhas baratas cheias de champagne rosé. Ou - Esse ano vou ser uma pessoa melhor - e trepam com a melhor amiga da esposa na noite do ano novo, a velha desculpa da embriaguez prontinha na ponta da lígua. 
Ano que vem, eu prometo. Prometo que dessa vez vou deixar o canalha - mas nunca. Prometo estudar mais, contrariando o numero dois que diz respeito a fazer presença em todas as festinhas da faculdade. Parar de fumar, beber menos, arrumar um emprego, mudar de casa, construir uma família, fazer alguém feliz.

Tudo só promessa. 

sábado, 14 de dezembro de 2013

Desabafo 1

As coisas sempre foram muito bem definidas entre a gente. De um jeito ou de outro sabíamos nas entrelinhas o que era melhor, fazer fluir nossa amizade pura e bonita. Comecei a desconfiar de você. A culpa foi sua. Eu teria vivido a vida inteira ao seu lado, lhe ajudando, a mão, o braço, já havia lhe entregue o coração e a alma também. Sua insegurança (ou imaturidade) minou a nossa combinação. Aquele dia que você ficou reclamando sem parar, nada procedia, eu não merecia aquele peso. Você gosta de mim enquanto sente poder controlar. Não consegue dormir sem transar, embora tenha suas amizades verdadeiras tem ojeriza a um vínculo mais adulto, prefere a superficialidade, sanar seus intentos. Olha... você até que é legal, mas deu. Segue teu caminho.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Um Diálogo

- Aonde você está agora? - Ela pergunta ansiosa enrolando o fio pelo entorno dos dedos ossudos e tortos, enquanto descasca nervosamente o esmalte vermelho das unhas compridas.
- Eu... - Respirei nervoso sem saber bem o que dizer.
- O que é essa barulheira atrás de você?
- É... - Senti sua mão apertando o telefone do outro lado da linha, toda a tensão ecoando nos estralos elétricos de um gesto.
- Faz um dia! Um dia e você já se enfia por aí, não é?! Onde foi dessa vez?! Hein?! Alô?!
- Na verdade... - Ela me interrompe aos berros.
- Não quero mais saber! Não sei nem porque eu liguei, você não tem jeito mesmo!

Permaneço quieto e após alguns segundos constrangedores ela desliga.
Coloco o celular no bolso sem saber o que dizer.

Olho para trás e a puta volta e me chupa a orelha.
Solto uma risadinha.


quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Livre

Feito uma lantejoula solta no ar, um colibri voando sinuosamente num alaranjado céu. Livre como um galho de salgueiro que se solta no fim de uma quente tarde de verão, como o vapor se desprendendo da calçada rente aos primeiros pingos de uma tempestade torrencial. Não era mais uma pessoa, não era mais homem, mulher... era mais do que tudo isso. Era apenas desejo e vontade de fazer amor. Fazer afeto, fazer bem feito. Demorado, deslizando vigorosamente doce feito leite condensado. Não era mais adulto e nem criança, era a mais perfeita síntese entre a lógica e o sentido, o exterior e o interior, entre a ciência e a religião. Livre para sorver cada miríade e sutileza com intensa vivacidade. Livre para subir e sumir, e como que sonhando num átimo de segundo, poder lá de cima assisitir – há milhas e milhas de distância – papai com as mãos cheias de sangue chorando sobre o meu cadáver.

domingo, 1 de dezembro de 2013

Noite

Segurava algo com suas mãozinhas frígidas escapulindo pelas mangas do casaco de lã negra. A pele branquinha tencionando os dedos ressecados pelo vento. Eu a observava através do reflexo na janela do barco. Preciso fingir que estou lendo alguma coisa. Ela se levanta tímida enquanto todos os passageiros preparam-se para o desembarque. Permaneço. Suas unhas descascadas infligindo as rachaduras. Sua face impermeável se esgueirando pelos cantinhos, a bota de borracha que esguichava.

Cinco horas da tarde e o inverno devorando o dia. Lamentei. A essência pútrida de peixe adentrando minhas narinas enquanto eu tentava inutilmente esconde-las no cachecol azulado. O choro triste do vento se aprofundando em meus tímpanos. As botinhas de borracha que agora gemiam alto com os passinhos rápidos da guria. 

As pessoas diminuindo. Toda uma multidão reduzida a gatos pingados cruzando taciturnos o nosso caminho. As luzes se apagando enquanto o dia desfalece em um último sopro de vida. A garota torna-se para mim. O reflexo do último brilho de luz em seu olhar pálido. A escuridão.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Ausência 03.

É a agulha do disco quando termina de tocar a última faixa.
O copo bem vazio no meio de uma noite como essa.
As ruas onde agora tudo parece novo.
A mesa da sala de estar.

domingo, 3 de novembro de 2013

Ausência 02.

Sinto a vibração do telefone sobre a cadeira. Abro a bolsa com descrição, mas nada - e já é meia noite. A mocidade se embriaga com garrafas de champagne de 600 contos que o papai deles inclui na mesada. Peço licença para ir ao toalete.

Um lavabo cheio de mulheres plásticas com nariz de mentira. As cabines vazias. Os espelhos enormes. Alguém avisa a elas que retocar o batom não faz milagre. Uma cobrindo o olho roxo com base enquanto chorava pelo outro. Segura.

Voltei a uma mesa em que todos me observavam. E depois voltavam para seus assuntos ordinários enquanto refestelavam-se com bolo, whiskey e doses de cachaça importada. Estou em uma dieta low-carb, sorri mentirosa.

Me afundei em um canto. Desapareci. Ele me ergueu pelo braço preocupado - o que você tem, hein? - preocupadíssimo. Nada, menti novamente. Um sorriso amável dessa vez.

O telefone toca.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Ausência

Foi ela!
Apontei. A cama maldita que tragou minhas energias. Macia !? Oh sim, com suas espirais amoladas suportando até o peso duro de um cadáver.

Não há mais esperança!
Gritou e sua voz apagou-se muda desvanecida embaixo dos lençóis de linho escarlate.

Nunca mais. Suspirei atordoada, me emaranhando na pele tenra amanhecida de um outro caso.

O inverno gemia furioso pelos cantos das janelas.


segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Positivo

A brisa calma que vinha pela encosta do morro. Trazia lembranças do quão infeliz fora naquela cidade, aqueles anos. O sol que entra pela soleira da porta, demarcando uma sombra furtiva. As cores complementares, cheiro fresquinho de café. A brisa calma de uma manhã de primavera.

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Negativo

Eu nunca conheci minha tia. E, se não fosse pelas gafes cometidas pela minha mãe durante alguns almoços de domingo, talvez minha ela nem tivesse existido.

A primeira vez meu pai, em uma tentativa tola, quis tampar meus ouvidos. Em vergonha, os dedos ossudos de minha mãe puseram-se a cobrir seus lábios. O olhar rígido de meu pai em reprovação.
"Eu lembro um dia quando Cecí.".E eu sentia que aquela tal de Cecília seria um exemplo para tudo, se a permitissem.

Não existiam retratos dela. Todas as fotos de família pareciam ter acontecido em um estágio avançado da vida, como se pouco antes de eu nascer não existisse a fotografia, ou senão haveriam grandes buracos na linha do tempo. A infância de meus avós, o casamento, meu pai bebê e até cerca de seus seis anos de idade. Hiatus. O casamento de meus pais e algumas fotos recortadas em tamanhos e enquadramento peculiares. Meu nascimento. Meu berço com um par de mãos não identificadas posando ao lado, o anel dourado e fino, as unhas vermelhas e curtas, um recorte em diagonal.

Seria sua ausência, ou aquela sensação de que algo havia desaparecido, um alivio a perda, ou o tornaram assim para que nunca ninguém se esquecesse de minha tia. A peça do quebra cabeça que  perderam e então se torna a mais importante atraindo todos os olhares para o vazio, a fresta que abre abertura para o fundo do quadro.

A mera pronuncia de sílabas que se assemelhassem a seu nome já produzia grande efeito em minha Vó, se escolhendo pelos cantos doída. Era proibido perguntar sobre ela.

Eu nunca entendi o porque de todo aquele misterio e passava horas aos finais de semana deitado na grama observando as nuvens, imaginando todas as possíveis hipóteses sobre o que podia ter acometido Cecília.

1. Se apaixonou por um garoto que a família não aprovava e resolveu fugir de casa. Minha avó nunca a perdoou e nunca permitiu que ela voltasse apesar de todas as cartas lamentando o acontecimento e implorando por um abraço, enquanto grávida e abandonada ligava chorando de um orelhão em um posto da rodovia.

2. Se apaixonou por uma garota e fugiu de casa. Foi morar na Escandinavia com sua namorada Suéca. Nunca mais quis saber da família e dos amigos, apesar de todas as cartas lamentosas e chorosas de minha avó querendo conhecer os netos adotivos.

3. Foi sequestrada.

Eu nunca saberia como minha tia se parecia se não fosse por aquela tarde de domingo depois do almoço de familia. Quando perguntei a minha mãe se Cecília se parecia com meu pai e ela se colocou a rir. Não, ela disse sorrindo, ela era tão diferente... se parecia muito com sua avó mas tinha os cabelos acobreados sempre despenteados cobrindo o rosto, sua vó ficava louca. Eu sorri. Corri para a gaveta de fotos, queria ver como minha avó se parecia quando ela era jovem assim como minha tia. A ultima página do livro cedeu, uma bolsa de negativos. A primeira tira cheia de fotos de uma moça dormindo. Minha avó? As mãos cruzadas sobre o peito, um bouquet de flores. A tiara que segurava os cabelos para que não caíssem sobre o rosto, um sorriso.

...25. Uma doença prematura.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Víscera exposta

Deixou cuidadosamente o velho caderinho de capa de veludo de lado e partiu para a briga. Tomou um golpe seco e surdo na frente do nariz que o levou ao chão, seguido de uma espessa poça de sangue em que refletia o oponente rubro de raiva e punho cerrado, num misto de bazófia, desprezo e dó. Mais um dia de estudo em que não acabava bem. Chute no baço. Não sabia tratar as mulheres e com os homens a coisa andava de mal a pior. Ninguém o entendia, nem os mendigos, que lhe atiravam tranqueiras e impropérios enquanto se levantava do asfalto cheio de fuligem da matrópole quente, e as universitárias de dread-locks o olhavam com nojo, o fracassado em seus andrajos. Outro chute na têmpora. As moças bonitas o olhavam com pena, da mãe, é claro. E ouvindo um solo de trompete solando, o jovem nobre e polido recém golpeado pensou – a vida não anda fácil para os novos românticos. Chute no baço.

domingo, 7 de abril de 2013

Mudança

Ela repousou a xícara sobre a mesa, esboçou um sorriso que levantou sutilmente a orelha direita.A penugem alourada que cobria seus maxilares gentilmente se eriçando com seu entusiasmo. Disse. Eu quero isso, morar aonde você mora e ser diferente como você. Já é tempo, eu estou envelhecendo e nunca sai daqui. E nunca fui outra pessoa, mas você, você já foi várias, e ainda... Respirou tremula.

Eu me senti um tanto conturbada, meus dentes rangendo com o maldito bruxismo que os deixava lisos, e não cortavam mais nada. Nunca entendi essa percepção sobre minha vida e ainda mais agora depois de tanta mudança. Eu nunca quis ser eu, agora porque você? Permiti que meus pulmões inalassem um pouco daquele ar carregado de vapor antes que pudesse atrever uma reposta.

Você não entende. Sorri, e mordi os lábios de nervoso, enquanto meu pescoço dizia que não. Eu estou aqui porque eu tenho ele. Eu odeio esse lugar, eu odeio todas essas pessoas, mas isso não importa mais. Isso não importa as três da manhã quando voltamos juntos para casa ébrios, ele me carregando no colo o último terço do caminho e os dois rindo como duas crianças. Felizes. E o amor acontecendo debaixo dos lençois como nunca aconteceu antes. E as manhãs em que acordamos juntos eu posso me enrolar em seus braços enquanto toco mansinho sua pele alva toda pintada. Ele é a única coisa ainda...

Você não conseguiria. E eu nem quero que você tente, e eu não quero tentar te ajudar.

Uma lágrima escureceu os fios claros de sua pele. Uma enchente.

sábado, 23 de março de 2013

A fina arte de viver a vida

Nunca alinhado ao tempo e a realidade presente. Ali no apartamento mofado dos velhos móveis, uma sexta-feita qualquer de bares lotados da capital, abafados e quentes como estufa. Toda gente que saía aos borbotões, às gargalhadas e galhofas jogadas ao sabor do gracejo, um verão a mais em que a chuva frustara a expectativa dos cidadãos, um mormaço e um sabor libidinoso que ia escorrendo no cantos dos lábios dos que sorvem mais um copinho de breja.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Cidadão

Ele acordaria as sete e um quarto para as oito, atrasado dois minutos no relógio acinzentado que ganhou do avô. Levantaria da cama e vestiria a camisa, a calça, apertaria o cinto envolta do quadril, dois quilos a mais que ganhou no Natal. Não saberia dar o nó na gravata, pois ninguém nunca o ensinaria. Compraria daquelas de zíper com estampa de zig zag e ajeitaria ao entorno de seu pescoço, olharia no espelho mas não se sentiria impressionado. O terno e os sapatos. Deixaria o pequeno kit para polir o couro em uma caixinha ao lado da porta. Daria um laço e levantaria a alça da maleta, abriria a porta e começaria a rotina.



quarta-feira, 13 de março de 2013

Figura

Ele em alguns aspectos lembra papai. Na rudeza, no sangue frio, uma certa insensibilidade, um rigor matemático de julgar as situações. Lembra algo de uma sutileza máscula, elegante, especialmente quando se preparava para trabalhar, quando viajávamos e ele me pegava no colo... Quão segura e protegida me sentia no colo de papai.

terça-feira, 12 de março de 2013

Quando todos os dias eram uma noite de sexta-feira

Muito mais do que pessoas sinto falta mesmo é das situações. Dos acontecimentos desconcertantes. Das euforias efusivas, ataboalhoamentos, espúrios... Isso me contagiava. E como eu ria! O segredo da vida é o sorriso.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Liquid

Aqueles sonhos dourados, aquela imaginação desprovida de cabimento, toda idealização com base em nada... Agora o mundo é real. Avalanches emocionais se contorcendo entre o sim e o não, o rancor brutal encravado no turbilhão dos pensamentos, mas agora... a água apenas flui, afável, contornando as rochas.

domingo, 27 de janeiro de 2013

Silêncio

Minha Cecília imersa na piscina de casa pela metade. Sua costa magra alva se enchendo de fagulhas, o biquini preto contrastando com o leite translucido de sua pele. Seu cabelo acobreado molhado e penteado com os dedos para trás, enquanto debruçada sobre a borda dormia, ou fingia que. Cecília adormecida. Que bela obra-prima era, e a admirava pela janela enquanto preparava um drink.

Queria tocar Cecília e passar com ela as horas até o sol se por. Abri a porta para os fundos e pude notar o leve reflexo de suas delicadas orelhas ao soar de meus sapatos. Me sentei próximo a ela e degustei meu gin e tonica. Suspirei. Nunca me acostumara com a vista que tinhamos de nossa casa, o cheiro fresco das montanhas a se misturar delicadamente com o salgado do mar. Um presente pra você, Cecília. Ela abriu brevemente seus olhos selvagens e tornou a mim seu pescoço, não proferiu sequer uma palavra. Fechou os olhos e posou novamente a cabeça sobre os braços, silenciosa.

Dez anos atrás me puxaria para a piscina ainda com o terno e nos amaríamos até quase morrermos afogados. Riríamos embriagados feito dois adolescentes. Era assim que Cecília fazia. Seu olhar ébrio de lascívia me devorando, sua carne macia transbordando amor. Se enrolava toda nos lençois úmidos de suor e se aconchegava em meus braços, seu rosto doce cheio de felicidade.

Agora nada mais me restava de Cecília além de sua bela imagem e seu silêncio. Os caros jantares que a levei, os bailes de luxo, as viagens que queria leva-la mas ela nunca aparecia no aeroporto ou se escondia. Criou fobia de avião me disse uma vez, alias, me deixou um bilhete. E desaparecia. Desaparecia mesmo dentro de nossa própria casa. Comprei pra ela uma casa na praia, e um carro novo, e vestidos, dezenas de vestidos que ela nunca vestia, e desaparecia com eles também.

Eu nunca pedi nada disso, lamentava. E acariciava a barriga. O corte fundo no ventre, era tudo que seus dedinhos sentiam. Seus olhos se enchendo de lágrimas. O sangue escuro escorrendo e pingando de seu joelho. As perninhas tremulas enquanto olhava para mim e perguntava porque eu tinha feito isso.

Eu queria tanto um filho -  foi a ultima coisa que me disse, olhando fundo em meus olhos. Me perdoa Cecília, segurei sua mão enquanto mentia. Paguei um cirurgião para arrumar sua barriga, queria que ela ficasse bem denovo em um biquini. Acordou muda da cirurgia. Cecília calada.







Onze

Dez e trinta na Capital, e ela que moça de cidade pequena não sabia nem o necessário para descer do onibus. O ultimo ponto é deveras afastado e se esconde onde a penumbra noturna devora as luzinhas da cidade. E ela que tinha tanto medo do escuro. Apressou o passo, a bolsa no ombro apertada entre os finos dedos ralados e avermelhados de frio.

Dez minutos a mais, e eu estou em casa, ela pensou, e uma sensação de conforto adentrou seu espírito como a ideia de tirar as botas pesadas e o casaco e embalar seus pezinhos gelados em uma boa coberta. O vapor do cha acariciando a mucosa tenue de suas narinas. Chá de camomila pra acalmar os nervos e um bom livro para.

Sentiu alguma coisa esbarrar em seu braço e aquele doce sentimento de outrora fora bruscamente interrompido. Cidade nojenta cheia de gente imunda, pensou ao olhar a figura soturna que havia causado tamanho desconforto. Gente não civilizada.

A figura permaneceu ao seu lado observando com lascívia os contornos daquela moça que não pertencia aquele lugar. Murmurou algumas palavras sujas indecifráveis, mas que nelas haviam certeza de uma certa imundice de carater. As botas de couro marrom ainda mais apressadas. Mais do que nunca ela precisava fugir.

Dez e quarenta e aquela cidade ainda resistia a sonolência. Haviam tantas pessoas na rua, uma verdadeira multidão, entao porque aquela figura insistia? Parou no meio de um cruzamento movimentado e mudou o caminho. Quantas vezes. O mesmo animal excitado seguindo seu cheiro por todo o caminho. Uma besta. E lembrava algumas passagens da Biblia enquanto a figura se aproximava grunhindo.

Se adentrou em um grupo de pessoas conversando na tentativa de um esconderijo, a chave de casa apertada na mão, os dentinhos se fincando nos dedos. Gritou! Gritou tantas vezes. Para! Some daqui! Por que? Por que meu pai do céu?! E nenhuma alma se compadecia de sua causa, nem mesmo notavam que ela estava ali desesperada enquanto um cachorro humano farejava o cheiro do cio.

Dez para as onze. Um telefonema. Alguém? Por favor, suplicava enquanto as lágrimas escorriam de sua face rubra. Os olhos encharcados do choro, a visão baça. Começou a correr, dobrou esquinas, tornou ruas. Os pés cansados e os tornozelos prestes a ceder. Um ruído agudo dentro da escuridão das horas. O relógio bate as onze.