quarta-feira, 10 de outubro de 2012

A Cirurgia

Sinto-me feliz quando ela diz que ama outro homem. É um alívio não ser amado.
Mas enfim, puz o avental. Como quem calça luvas de boxe, e parti para a luta.
No caminho da sala de cirurgia pensava no quão fracassado eu era. Não soube descrever a operação. Sem inspiração. Seria o excesso de álcool no sangue por dias infindáveis? Ou o excesso de pensamentos aleatórios e devaneios pecaminosos?

Meu corpo todo se contorcia enquanto eu sucumbia aos delírios febris. Fazia uma semana. Meus poros encharcados de suor, os lençois de baunilha agora salgados fediam. Por favor, eu suplicava para a dor, mas ela insistia. E uma essência  putrida evaporava pelos meus orifícios. Pude escutar o rangido de meus ossos na tentativa falha de me levantar da cama. Antes que a luz se apagasse eu pude enxergar um corte na cuticula do meu dedão, e algo que parecia um algodão esverdeado se desfazendo enquanto eu rastejava pelo assoalho. Me encontraram na varanda de casa enquanto um cachorro tentava usar meu corpo desmaiado de tualete.  Alguém chamou uma ambulância.

9:15 da manhã. Espero sentado no sofá da minha casa, com toda complacência. Cada minuto ribombando a mente. Não quero me levantar, não quero sair para a rua, trânsito. Às 10:34 estou calçando as luvas de silicone, minha equipe asseadamente está a postos, com todos os instrumentos na bancada azul esverdeada. Este sujeito maltrapilho jogado em cima da maca não é estranho. De certo modo me reconheço neste semi-cadáver. Não preciso saber o seu nome, apenas o trabalho. Sei que no final a família irá me agradecer, como se eu fosse algum santo, ou algo que o valha. Quanta ironia.

Eu não tenho família. Foi tudo o que eu consegui balbuciar enquanto a enfermeira segurava meus braços para o termometro não cair deslizando pela minha pele molhada. Um acidente de carro quando eu era criança, meus avós que cuidaram de mim, o vô batendo nas minhas costas com a vara de jaboticabeira por causa da bebida, por causa da bebida e da tristeza. E depois chorava enquanto o sangue escorria sem que eu entendesse. Agora entendo, e te perdoo vô, para que o senhor não venha me encontrar com a vara de jaboticabeira denovo ao lado do Paizinho. Porque deve estar perto. Me disseram que esse ano o mundo acabava, mas eu me acabo muito antes, foi o que o médico me disse. Tem uma coisa podre dentro de você, apertando minha barriga estufada. A marca vermelha dos dedos custando a desaparecer, vamos ter de abrir.

Enfermeira, agiliza o bisturi. A carne da pele que mais se assemelhava um véu gelatinoso, nunca fiz uma incisão tão fácil nestes 13 anos de carreira. Macia e pútrida. Snict! O cheiro que podíamos sentir apesar da máscara, perfumava a sala com um odor que rivalizava ao de éter. Sangue jorrando estranhamente. Cortei a terceira veia, injeções mantinham o paciente desacordado, mas não era necessário. Snict! Chegara tão imaterial, que a única coisa verdadeira era este corpo estragado largado na nossa frente. Pessoas são cruéis consigo mesmas. Não me interessam destinos, apenas o passado. E desta carne abjeta, exposta à luz fria, descortinava um mundo de sórdidas reminiscências. Hemorragia intensa. ÁLCOOL, enfermeira. Rápido!

Será esse o paraíso? E a paz induzida da morfina entorpecia todas as extremidades do meu ser. Sentia-me tão leve que a carne macilenta de minhas coxas parecia flutuar pelos lençois encharcados de um líquido verde viscoso. Por que eu nunca experimentei drogas antes? Não era certo se eu podia abrir meus olhos ou se era tudo apenas um bonito sonho. A sala branca imaculada com as cortinas creme que bailavam ao vento roçando gentilmente a ponta de meu nariz. O líquido verde era agora um belo gramado cheirando orvalho fresco que eu podia tocar sutilmente com os dedos. E tudo cheirava mar  e eu conseguia ouvir o barulho das ondas quebrando no fundo dos meus pensamentos, sorri. Uma felicidade me preencheu a barriga. Barriga feliz como quando a gente come uma coisa muito gostosa e sente nosso estomago dizendo obrigado. Mas e a máscara de oxigênio? O Vô ali de pé me esperando com a vara de jaboticabeira. Enfermeira, ALCOOL. Alguém gritava com desepero. E minha barriga explodia de felicidade.

Eu tenho asco. Eu tenho nojo. Asco, aversão. Cada veia cortada é uma ampulheta virada na minha vida. Quantas ampulhetas ainda terei de virar? Tivemos de virar uma ampulheta a fim de conter a hemorragia. Cortamos o abcesso originário do carcinoma. Realoquei uma placa de titânio com sucesso na artéria da ponte de safena. Maldito corpo canalha, vai sobreviver. As paredes internas do músculo abdominal adutor demonstravam uma inflamação estranha em nível avançado. Lancei mão do bisturí e separei com cuidado dois nervos ciáticos cortando o terceiro, mesmo sem anestesia local. Preferimos não aplicar anestesia geral devido ao estágio avançado de debilitação do paciente. Perfurei o estômago, encontrei uma úlcera, raspei o couro biliar e com o excesso sangue eu quase não podia enxergar. Necessário um choque de estímulo cardíaco. O paciente exultante abria os olhos vidrado no teto. Pobre coitado, tinha cara de homosexual, seu ânus havia um alargamento característico e seu pênis continha uma protuberância dígna de vida promíscua. Estômago em ordem. Batimentos cardíacos dimunuindo. Pedi para o meu assistente costurar a região do baço, onde retiramos um feijão do apêndice, um milagre este corpo ter chegado vivo até mim. Saí da mesa, Carlos ofereceu-me um bombom, comi olhando para baixo, amassei o papel de plástico, joguei no chão e fui de encontro àquele corpo aberto, enfermeiros não conseguiam conter uma outra hemorragia, estavam desesperados, o aparelho demonstrava ritmo cardiorespiratório baixo, apalpei a região inchada. Dobrei a carne, dei os últimos pontos, mas algo estranho aconteceu.

A vaca leiteira do vô me olhava ruminante com cara de paisagem enquanto os leitõezinhos esfomeados se empoleiravam para alcançar suas tetas. Os dentinhos finos estraçalhando a mucosa tenra. Mimosa nem sentia com sua expressão francesa enquanto o sangue misturava ao leite e os bichinhos igual hienas iam comendo e sugando a carne inteira.

Enquanto raspávamos a região da virilha – a fim de retirar um carcinoma do tamanho de uma cabeça de leitão – a artéria femural começou a expelir, além de muito sangue, um jorro purulento misturado a... esperma. Não entendemos. Conhecíamos bem aquele tipo de caso raro na faculdade. Tratava-se se um T.D.E.F. - Transtorno de Déficit de Estrutura Familiar. Rapidamente Carlinhos, o enfermeiro-senior, cauterizou o abcesso. Mas outra parte de seu frágil e ignóbil daquele corpo moribundo começou a inchar - o baço. Fechamos com 6 pontos frouxos o abdomen do paciente e logo pressionei o edema. Forte convulsão. Violentíssima. Ouvimos um mugido estridente. O paciente começou a berrar – MÃEZINHAAAAAA! – em seguida um guincho impronunciável, e, num último solavanco, ceder e entregar o corpo aos aparelhos que ali iniciavam eletronicamente a respiração artificial. Apertamos os nós dos pontos abdominais. Enchemos a região da virilha que continha a cancerígena com gordura hidrogenada calcificada, filtramos e fechamos algumas veias e dei visto na papelada final. Cansei.

Lá fora, no saguão principal, pisquei para algumas estagiárias lindinhas (eles me adoram) lavei as mãos na enfermaria e fui dar o visto no prontuário final, quando me deparo com o sobrenome, ao lado da insígnia entre aspas "INDIGENTE" encontro o meu sobrenome, desmaio. Algumas horas depois, sedado, através de rostos crispados, ouço a confirmação que o invertido e falecido era meu filho, aquele mesmo que abandonei ainda bebê, fruto de um casamento mal sucedido, em que, a mãe, aquela vaca, morrera "acidentalmente" no curral.