quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Milgrau

Herculano é um excelente rapaz. Dono de uma CB caindo aos pedaços, hoje ganha as ruas e a vida como motoboy numa boa firma. Sua infância não foi lá muito gloriosa, o pai abriu uma adega, que faliu logo na sequência. A mãe morreu repentinamente de derrame, por sorte, um dia antes ao falecimento ela havia confiado a guarda de Herculano às mãos de um novo amigo do filho, Tom, que passava confiança e tinha arranjado um trabalho digno ao filho dela, salvando-o de vez dessa vida de maconha, bebida, cocaína, safadeza, marginalidade. Herculano além  ganhar um amigo fiel – e pai – agora encontra o amor, nos beijos e abraços da Neguinha. Casam-se e vão morar na favela. Herculano compra um Kadett 91 e a Neguinha consegue um fogão, geladeira, mesa, tv, cama, sofá e um computador semi-novo, tudo à preço exuberante. Adotaram um gato que rondava de vadiagem pelas redondezas e o batizaram de Milgrau. A vida não é fácil, mas eles levam na coragem, ele trabalhando todos os dias como Motoboy e ela nas costuras e venda de bijouterias e badulaques. O amor, às vezes não é suficiente, mas no final se entendem. O casal tem na parede uma folha impressa em papel jornal escrita:

"O Senhor é meu provedor de banda larga e Ele nunca cairá."

Neste fim de ano estão muito felizes e ansiosos, planejando passar o natal na casa do Tom e o reveillón no litoral.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Vodka

No estacionamento encontramos uma garafa cheia de vodka importada. Daquela bem bonita e reluzente de fazer o olhar lacrimejar. Carlinhos, o líder da turma deu o primeiro gole, fez cara feia. Ofereceu a garrafa para o Matheus, fazendo pose de machão, deu um pequeno gole e tossiu. Gílson sorveu uma golada e na sequência um urro, imitando o pai que é bebum. Minha vez, bebi daquela seiva russa e gostei da sensação. Jogamos um pouco mais de futebol de botão enquanto aquela bonita garrafa nos assistia, como que percebendo a tensão de cada um em se mostrar mais viril que o outro. Quem teria a coragem de dar o próximo gole?

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Só mais essa noite

O batom deslizando úmido pelos lábios rachados. Só mais essa noite. Ela suspirou olhando a sua imagem destorcida no espelho com bordas douradas rococó, o verniz feito ouro descascando das arestas pontudas. A liga se esquivando dos dedinhos trêmulos e ébrios, na triste tentativa de impedir a moça de arrumar cliente hoje.

Abotoa o vestidinho preto cheio dos remendos, porque todos eles estouram. Gostam de chegar arregaçando tudo, o vestido e a menininha lá embaixo, e vão se enfiando como polvos cheios de tentáculos abrindo os buracos. A conta é essa, mais cinco reais dos botões estourados. Ou a conta é essa com os cinco reais dos botões inclusos, porque isso é negócio serio não quero ter prejuizo.

Só mais essa noite. Ela respira fundo enquanto calça os sapatinhos pretos de salto fino. Os tornozelos rubros de frio se esfregando. Junto a grana e vou pra Alemanha começar tudo denovo. Já ta tudo dentro da caixinha, o dinheiro e a foto da Nossa Senhora das Graças. Meu Pai me perdoa e me leva pra Alemanha que é o paraíso e eu começo tudo denovo como uma moça honesta. Arrumo até um alemão desses bem louros e altos de olho azul, caso e tenho dois filhos. Raquel e Renato. Quero um casal.

Sai da pensão pelo portãozinho dos fundos que é pra ninguém ficar sabendo. O danado range mas mesmo assim ela agiliza o passo com as pontinhas do sapato igual bailarina tic tic tic, o vestido esvoaçando mostrando toda a vergonha. O vento a empurrando leve, parece que não pesa uma grama.
Queria ser bailarina! A mãezinha sempre disse que eu tinha um talento natural pra isso, mas depois sumiu. Sumiu e me deixou com um cara lá, o padastro. O padastro com os dedos de aranha estourando meu pijama. Faz 8 anos já, que cada ano que passa eu ponho uma bolinha no colar da mãezinha e prendo ele na calcinha pra me dar boa sorte, só mais essa noite vou precisar.

Um carro preto perto da calçada. Oi boneca. E a moça se desliza para dentro e fecha a porta.
A conta é essa mais 10 reais para consertar o forro do vestido que o senhor rasgou. E o negócio é serio, não quero prejuizo, amanha vou pra Alemanha.


domingo, 11 de novembro de 2012

Oniricamente em Mistério

Bem-me-quer, mal-me-quer. Abri-lhe uma garrafa de vinho, cheiramos a cortiça, gosto seco e perfumado das melhores uvas da península ibérica. Ela, no alto de seus 30 anos. Ela, mulher feita. Emanando notas cítricas e almiscaradas. Vestida com vestido de cetim. Uma enxarpe bordada e a barra com alguns detalhes em brocados, enfim. Que as leves carícias sutis desnudavam largadas pelo carpete, broches, inclinados até o rodapé. Ligeira poeira. Corpos lascivos que se chocam, roçam, sinuosos contornam, do chão ao colchão. À contorcer a alma exausta de prazer. A melodia, o vinho, o mel, fluídos entre a noite e o dia. Claras são essas coisas do amor. Claras como a pálida tez do luar, veladas em espessa bruma no ar.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Mazela

Bem-me-quer, mal-me-quer. Sempre substituindo uma imensa auto-maldade por outra qualquer, especialmente dirigida às pessoas que bem lhe quer. Quando as portas estão fechadas, quando a honra foi manchada. Nem uma tacada de sorte lhe salvará. Um trago no meio da noite, uma puta dançando no asfalto. Nem uma boceta de salto lhe salvará. Apesar de toda mudança tecnológica as coisas andam ao deus-dará. Os hipster andam pra lá, os revoltosos cá, todos na paranóia, que abraçam a primeira causa nobre. E moralistas tentam regar suas plantas, tudo em vão. Por baixo de toda essa patranha, as placas tectônicas e o magma vulcânico vindo das entranhas. Que jorra, esquicha, sangra e chora, expalha por toda tensão. Bombando. Em cada artéria do ser-humano. Que relaxa.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Aquele casal extraordinário que costumávamos ser

Encontrou a gatinha atropelada na rua, toda estropiada mas ainda respirando. Levou para casa, salvou, cuidou, a batizou de Liga Leve. Essa gatinha mudou toda a sua vida. Passou a ver a vida inteira sob outro prisma. Passou a ver as coisas como ela são, não mais pela ótica da ilusão. A dura realidade ou a doce ilusão. Sabia que um dia veria as coisas com transparência, e a gatinha, Liga Leve, fez perceber isso com toda volúpia que uma realidade se apresenta, mas de uma forma tão singela, conquistara seu coração, sua alma abraçada, quase pode tocar as nuvens fofas de algodão e se deitar feliz num sono bom. Viver é um sonho bom.